terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A desistência da Língua


Por Inês Pedrosa: 


Numa das últimas vezes em que escrevi um artigo contra o chamado Acordo Ortográfico, um amigo aconselhou-me a abandonar o assunto porque, estando já prestes a entrar em vigor no Brasil, seria inútil contestá-lo. Acrescentou que a não-adesão criaria problemas económicos a Portugal.

Este modelo argumentativo diz muito sobre o tempo em que vivemos: os espertos são os que seguem o rebanho e desistem de pensar pela própria cabeça, para não levantar ondas. Em caso de resistência, apela-se ao incontestável Deus da Economia, que suspende qualquer explicação.

Sucede que aquilo a que se convencionou chamar Acordo Ortográfico é uma fraude, porque:

a) Não estabelece nenhum acordo (a palavra recepção continuará a escrever-se com 'p' no Brasil e perde o 'p' em Portugal, porque o fundamento da ortografia passa a ser a pronúncia - e ainda por cima o texto refere a “pronúncia culta”, o que agrava o patético do tema);

b) Confunde os utilizadores, dado que a etimologia das palavras, que esclarecia as dúvidas, deixa de se aplicar. Sintoma de uma época que despreza a memória e vive em esquecimento acelerado, este 'acordo' ignora voluntariamente a história e o trajecto da Língua. É mais um passo no caminho do desprezo pela riqueza e pela força da Língua Portuguesa.

Em L'identité malhereuse, o ensaísta francês Alain Finkielkraut reflecte, entre outras coisas, sobre a justificação da ministra do Ensino Superior francês para criar, em 2013, cursos em inglês.
Dizia ela: “Se não autorizarmos cursos em inglês, não atrairemos estudantes dos países emergentes, como a Coreia do Sul ou a Índia”.
Conclui Finkielkraut: “Reina portanto o funcionalismo, que conduz à uniformidade. Assim que o verbo esteja reduzido a veículo, a meio de informação e de comunicação, toda a gente virá buscar o mais confortável (…). Para o novo regime semântico, a forma não conta para nada, só o sentido faz sentido” (tradução minha, porque infelizmente Portugal traduz cada vez menos livros de ensaio, e menos ainda de pensadores contra-corrente, como é o caso deste).
O fascínio supostamente economicista pela língua inglesa está também em franco crescimento nas universidades portuguesas, que julgam ser esse o caminho da internacionalização, do cosmopolitismo, do dinheiro e da glória.
Basta olhar para o desaparecimento veloz da língua e da cultura francesas em Portugal para perceber o resultado desastroso dessa cedência à Língua Imperial (o inglês).

A anulação de uma língua representa a desistência da cultura que ela veicula - não só o apagamento exterior da sua literatura (o que já não é pouco, porque a língua portuguesa sempre se distinguiu pela sua produção literária), como do cinema, do teatro e da música.

Em vez de cuidar do reforço do ensino da Língua no mundo, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa tem passado as últimas décadas entretida com um acordo impossível.

Devia olhar para os ingleses e americanos, ou para os espanhóis e para a América hispânica, e meditar sobre como conseguiram eles que as suas duas línguas dominassem o mundo. Não foi com protocolos burocráticos sobre minhoquices ortográficas. Dedicaram-se, pelo contrário, a investir no que interessa e rende: a universalização da Língua.

Artigo publicado no SOL (carregar aqui, ou no título, para aceder ao link original) 

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